Kleber K. Shima – Técnica a serviço da música (por Rafael Ferraz)
Com uma longa carreira no mercado nacional, seja como professor, transcripter, com sua banda Hot Rocks, Kléber sempre está acompanhado de equipamentos de primeira e de uma fluência técnica de gente grande. Mas nem só de técnica vive o músico. E é isso o que ele nos mostra no disco “Aurea”. Belas composições com belas melodias. O bacana do disco é que são músicas que parecem ter uma letra, embora, obviamente sendo instrumental, você não ouvirá vocais, mas a sensação que temos é de estar ouvindo uma canção. E isso não é fácil de conseguir, ainda mais se tratando de guitarra rock instrumental, onde o público sempre espera o velho exibicionismo de sempre. Não foi por esse caminho que K.Shima optou caminhar. E isso só trouxe vantagens para o resultado final, como vocês poderão conferir ao ouvir o disco.
Kleber, pra gente começar, o que te deu o “start” para decidir começar a trabalhar esse disco?
Logo após o lançamento do primeiro CD (Anamorphose, de 2006), as pessoas começaram a perguntar quando eu iria gravar o segundo, mas como tenho que cuidar da minha escola, o Instituto Musical IMKS, fazer três a quatro shows por semana, escrever colunas para revistas e fazer outras atividades musicais, deixei as composições de lado por um tempo.
Isso mudou quando eu iniciei o projeto “Tributo Aos Heróis da Guitarra” em 2009. Chamei o baterista Fernando Porto, o baixista Bruno Ladislau e o tecladista Rene Sanches e a química acabou acontecendo, pois no meio dos ensaios fazíamos jam sessions bem interessantes. Esse foi o “start” principal.
A necessidade de ter um material para apresentar em workshops e apresentações também pesou e isso agilizou o processo de composição e gravação.
Começamos gravando no Creative Studios, com o famoso produtor Ricardo Nagata, que infelizmente faleceu durante a gravação. Recomeçamos do zero no estúdio Art Brasil, do guitarrista Omar Campos (guitarrista do Oswaldinho do Acordeon e ex-professor da ULM) pela facilidade de ser no mesmo quarteirão da minha casa.
Como é para você o processo de composição?
Às vezes eu ligo a guitarra sem pensar em nada e começo a tocar de forma intuitiva até surgir algum riff ou lick interessante e uso o gravador do celular só pra registrar essas ideias. Depois de uns dias eu ouço de novo , separo o que me agrada e vou desenvolvendo outras partes. Nessa hora o conhecimento teórico ajuda bastante, pois você consegue dar a continuidade nas ideias, assim como criar variações, modulações, harmonizar de várias formas sem depender exclusivamente da inspiração.
Eu sempre ando com um caderno pautado onde eu escrevo as minhas ideias. Gosto do papel, do manuscrito, de escrever na partitura. Talvez por causa da faculdade, adquiri essa cultura da música erudita.
Eu busco fazer da maneira mais orgânica possível. Só uso o computador na hora de fazer a pré produção e testar overdubs , harmonizações e camadas de guitarras mas se eu pudesse, gravaria tudo em analógico, com fita de rolo!
O que você considera especial nesse método de gravação, e se você acha que um dia a tecnologia vai atingir aquele efeito orgânico que tínhamos e ouvíamos nas bandas antigas?
Não sou especialista no assunto, mas como vivenciei as duas épocas (vinil e cd) e já gravei nos dois sistemas (rolo e Pro Tools), posso dizer com certeza que o som analógico para mim é muito melhor, sendo que o mercado optou pelo som digital apenas pela praticidade, pois num disco de vinil todas as frequências e todos os harmônicos gerados na gravação permanecem intactos, mas quando o sinal é convertido para o digital, toda a riqueza e profundidade vão embora. Esses harmônicos não podem ser transferidos no momento da conversão.
Nosso ouvido por natureza é analógico, nosso organismo aceita melhor o som analógico e o ser humano consegue ficar exposto durante mais tempo no som analógico. Já fizeram esse teste em discotecas, os lugares onde o som era de cd, as pessoas iam embora mais cedo.
O fato é que as pessoas estão percebendo isso e as vendas de vinil estão aumentando no mundo inteiro em ritmo exponencial. Até no Brasil já temos seções de vinil nas grandes lojas. Isso é bom, pois valoriza a arte da capa, inibe a pirataria, se ouve com mais qualidade, enfim, é uma cultura que os mais jovens ainda não conhecem. Quem já gravou no sistema analógico e quem já ouviu discos de vinil num bom toca discos e num amplificador valvulado, sabe o que eu estou falando. É a mesma coisa que tocar num pedal que simula um amp caríssimo e depois tocar nesse amp caríssimo de verdade. O som digital é uma simulação, uma amostra.
Acho difícil a tecnologia conseguir através de códigos binários 0 e 1, reproduzir toda a riqueza e detalhes que o som analógico reproduz. Em termos de qualidade, a única coisa que supera o som analógico é ouvir a música ao vivo. Isso nenhuma tecnologia irá substituir!
Apesar da atmosfera roqueira do disco, há também uma mistura bacana de ritmos, inclusive ritmos brasileiros. Fale um pouco sobre esse conceito.
Sim, apesar de me considerar um guitarrista de rock, eu comecei tocando chorinho no cavaco porque meu primeiro professor só tocava esse estilo. Como eu tinha apenas oito anos e ele era o único que a minha família conhecia, foi com ele mesmo. O rock eu ia tirando por conta, de ouvido mesmo! Só com 15 anos comecei a estudar sério, com Andres Cassis, um guitarrista de fusion. Com ele aprendi a ler partitura, estudar harmonia, conheci Mike Stern, John Mclaughlin, Scott Henderson e outros guitarristas do gênero.
Na faculdade e na ULM também me aprofundei na música erudita e no jazz, e isso reflete muito no meu jeito de tocar.
Sobre a variedade, creio que hoje as pessoas se interessam mais pelas músicas avulsas do que pelos álbuns.
É uma pena pois bem pouco tempo atrás, ainda existia o culto ao álbum, ao conjunto da obra, ao álbum conceitual, eu ia na galeria do rock ou na Woodstock Discos e ficava horas admirando a arte da capa e era comum ouvir um disco na íntegra prestando atenção em cada detalhe.
Nos dias de hoje, se já é difícil fazer uma pessoa parar pra ouvir um álbum instrumental, imagina um álbum instrumental inteiro do mesmo estilo, eu mesmo não teria paciência.
Minha meta não é mostrar minhas habilidades como instrumentista, mas sim de mostrar as composições e mostrar os estilos que eu gosto, seja rock progressivo, chorinho, trash metal, blues, country ou jazz.
Essa variedade também faz parte da minha formação. No Brasil, quem opta em viver de música e tem uma família pra sustentar, sem depender do sustento dos pais, tem que tocar de tudo.
No meu caso, além de tocar, sou produtor artístico (meu último trabalho foi a produção do disco e do show do cantor Fernando Ordones), toco na noite toda sexta e sábado na banda Hot Rocks (Classic Rock), toco em cerimônias de casamento no grupo Abadia St. Petters, toco com a cantora de jazz & blues Misty, toco num trio acústico toda terça e domingo (Trio Certo Diabos), ou seja, num único dia, posso estar tocando Ave Maria na Igreja a tarde e Highway To Hell no bar a noite.
A presença do teclado no disco nos remete as bandas de rock progressivo. Era essa a intenção?
Com certeza. Sempre fui fã de rock progressivo e de timbres de Moog, Mellotron e Hammond. Como sou bacharel em violão erudito e sou um guitarrista de rock, é natural que o rock progressivo fizesse parte da minha influência musical. Inclusive meu interessei pelo violão erudito foi ouvindo Yes, King Crimson, ELP, Genesis.
Os guitarristas que tinham influência erudita e que eu admirava eram Randy Rhoads, Blackmore, Steve Howe e Steve Hackett.
Só na faculdade que tive acesso e pude estudar e apreciar Segovia, John Williams, Ralph Towner, Paulo Belinatti, Albeniz e outros mestres.
Em “Baião de 2”, o solo possui o que pareceu um acordo entre Steve Morse e Blackmore, pela fluência técnica e a sonoridade. Esses são caras que te influenciaram? Quem mais?
Sobre o Steve Morse, eu me identifico com ele pela variedade de estilos. Principalmente na época da Steve Morse Band. No Deep Purple eu não gosto tanto. Mas o cara manda muito no country, jazz, rock, blues, erudito. Blackmore foi um dos primeiros virtuose s da guitarra elétrica. A clareza e a velocidade que ele tinha nos anos 70 eram absurdas. Vi um documentário da série “Classic Albums” do Machine Head, com a pista separada do canal de guitarra, e nessa hora vi o quanto Blackmore é um gênio. No Japão tem um bar chamado Blackmore, onde os frequentadores são fanáticos pelo guitarrista, onde existe um verdadeiro culto. O documentário “Global Metal” mostra como funciona esse bar.
Atualmente meus guitarristas preferidos são: Terje Rypdal, Ralph Towner, John Mclaughlin, Carl Verheyen, Eric Johnson, SRV, Larry Carlton, Allan Holdsworth e George Benson. Mas no começo foram Randy Rhoads, Van Halen, Trevor Rabin, Steve Lukather, Adrian Smith, Page, Beck, Hendrix e Clapton, que continuo amando e são como velhos amigos. É sempre um prazer ouvir novamente!
A música boa está além dos rótulos. Eu me considero um guitarrista de rock, mas comecei tocando chorinho no cavaco, tive aulas com um mestre no fusion, me formei em violão erudito e improvisação de jazz na ULM. Minha filosofia é ter a disciplina do erudito, improvisação do jazz, feeling do blues, harmonia da MPB e a pegada do rock.
Como foram construídos os arranjos do disco?
As músicas mais elétricas nasceram de riffs que acabaram se desenvolvendo nas jam sessions, pois gosto da interação com outros músicos, acho que não adianta você compor a música inteira no computador. A chance de ficar uma porcaria na hora de tocar ao vivo é grande.
As músicas acústicas nasceram a partir de progressões harmônicas e em forma de pequenos estudos baseados em fundamentos teóricos. Foi um processo mais cerebral e a ideia era fazer uma composição mais sofisticada.
Nessas músicas eu não tive a preocupação em querer tocar ao vivo, por isso pude experimentar e ousar mais nos arranjos.
Sobre os solos, prevaleceu o improviso ou rolaram alguns solos “planejados”?
Os solos foram a última parte do processo criativo. Estava mais focado nas composições e no arranjo em geral. Mas o método que eu utilizo para a composição de solos é planejar o começo e fim e no meio eu deixo alguns espaços para improvisar. Isso mantém o equilíbrio entre uma ideia arquitetada e uma ideia espontânea.
O solo da “Fast Kelly” não tinha um solo definido, mas como eu fiz há muito tempo e já toquei em tantos shows, o solo acabou nascendo sozinho e quando me dei conta, sempre estava fazendo o mesmo solo!
É incrível como tem solos que se transformam numa música dentro da música e você não consegue mais se livrar dele. A música “Little Cry” eu criei na hora da gravação, fiz uns três takes e escolhi o melhor, mas a maioria dos solos eu cheguei no estúdio com uma ideia pré concebida e com espaços para improvisar na hora da gravação.
Quem são os músicos que gravaram com você?
As participações especiais foram do Michel Leme, que participou na música “Sunrise” e Mello Jr. que fez os solos da “Beautiful Morning”. O Fernando Porto gravou a bateria, Bruno Ladislau e Emerson Marciano gravaram o baixo, Rene Sanches e Marcio Porto gravaram o teclado e Henrique Celso gravou a percussão.
Quais guitarras e efeitos você utilizou? E os amplificadores?
Guitarras da Music Maker (LPS, STK e LTD), minha velha Fender 1974 e uma Fender Eric Clapton Signature. Amplificadores Bogner Shiva e Music Maker MM-50 na música “Beatiful Morning”.
Usei poucos efeitos, apenas um Delay da Maxon AD-999 Pro, um Ebow, um Talk Box Banshee da Rocktron e o resto foram obtidos pela saturação do amplificador.
O segredo mesmo foi na hora de microfonar. Achar o posicionamento correto dos microfones faz toda a diferença, além da acústica da sala. Usamos um AKG4400 para ambiência, um Shure SM-57 perto do falante. Em algumas ocasisões, usamos um AKG 3000 no falante.
Testamos várias configurações de caixas e falantes. No final optei por uma caixa 2X12 Celestion Vintage 30.
Como está sendo feita a divulgação e como tem sido a recepção da galera em relação ao repertório do CD?
A divulgação está muito boa. O disco está sendo distribuído mundialmente pela Die Hard Records (www.diehard.com.br). Fiz um show do CD no Guitar Week, que foi um dos maiores eventos de guitarra já feitos no Brasil, realizado pela Music Maker Custom Guitars, fiz o show de lançamento no Café Piu Piu com vários convidados, fiz vários workshops divulgando o CD, entrevistas em diversos programas de web tv, radio, sites especializados e várias apresentações na Expo Music 2012, um pouco antes do CD ser lançado.
Que recado você pode deixar pra galera que pensa em lançar um trabalho próprio?
Eu sempre encorajo os guitarristas a terem um material próprio com músicas autorais, independente do retorno financeiro. Somente dessa forma é possível obter respeito e visibilidade.
Nos dias de hoje, muitos acham que não vale a pena o esforço, o investimento e o tempo perdido. Eu conheço músicos fantásticos que impressionam, mas que não tem espaço e ninguém conhece justamente por não ter um trabalho próprio. Tocar na noite, em banda cover, acompanhando artistas, fazendo jingles e gravações é muito bom para o aprendizado, experiência, fazer contatos, ganhar novos alunos, ter oportunidades e principalmente, pagar as contas.
Tocar bem muita gente toca, mas ser respeitado e admirado por outros músicos e profissionais da área, só tendo um trabalho próprio.
Quase ninguém faz isso, mas os que colhem mais frutos são os poucos que se aventuram nessa jornada.