Mozart Mello 35 anos de Dedicação ao Ensino (por André Sampaio/André Martins/Luiz Cláudio de Souza)


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Em uma conversa descontraída e informal, o mais respeitado professor de guitarra do Brasil, Mozart Mello, comemora seus 35 anos de dedicação ao ensino da guitarra. De presente, fala de sua trajetória como músico, do início nos ensaios no porão enquanto garoto e como caminhou para os palcos internacionais

AM- Fale um pouco sobre o início da sua carreira.

Para começar gostaria de fazer um comentário ridículo que é sobre o meu nome. Meu pai também se chamava Mozart, então ele me sacaneou (risos). É como se eu tivesse que ser músico, já que ganhei esse nome. Minha família sempre foi muito musical, todo mundo tocava, minha mãe toca acordeom, meu pai tocava violão e piano, minha irmã mais velha foi aluna de um aluno do Paulinho Nogueira e fui criado neste ambiente onde a música faz parte da educação. Mesmo não tendo estudado, eu via todo mundo tocar e queria tocar também. Até que entrou a fase da pré-adolescência e adolescência, a era Beatles e tal. Os Beatles foram um empurrão muito grande para minha geração. O cara não tinha como não gostar de música. Era uma idolatria, muito complicado explicar. Eu me lembro que morava na Pompéia que já era um bairro de São Paulo movido à música, e entrava na primeira sessão de cinema, me escondia no banheiro e assistia à segunda, terceira, via todas as sessões. Minha geração era assim. Era uma idolatria, os ídolos eram músicos e isso foi determinante na minha formação e na da ga- lera da minha geração. Imagine Beatles no final da dé- cada de 60, em 66 ou 67. Como eu nasci em 53, estava com aquela idade fatídica dos 13, 14 anos querendo me vestir como eles, querendo tocar as suas músicas e tal. Deste modo não tem como negar que eles deram um grande empurrão para minha carreira, mas até imaginar que fosse viver de música era impossível.

Em 1967, eu já tocava na televisão em um programa que imitava a jovem guarda chamado Mini Guarda e nós tínhamos um cara que se chamava Ed Carlos, que era o Roberto Carlos Mirim. Existiam várias bandas que tocavam lá, inclusive Os Minos, que eram os novos baianos. Pepeu nem tocava guitarra, e sim contrabaixo. E eu tocava em uma banda chamada Selvagens. Nessa época, eu já tocava na televisão tentando imitar a beatlemania. O programa ia ao ar aos domingos ao vivo e os ensaios eram aos sábados na TV Bandeirantes. Havia um programa lá chamado Quadrado Redondo em que tocavam os Mutantes, por exemplo. Então a diversão da gente era ver os ensaios das grandes bandas e o som era para valer, pegada rock’ n roll total (diz entusiasmado). Então, ali foi o começo de ter uma banda e sair tocando.

AM – Hoje em dia é muito diferente do que você está contando, você era uma criança de 14 anos que tocava em uma banda de crianças também, existiam os Mutantes que ensaiavam e tocavam na TV, os programas de televisão davam abertura a este tipo de coisa. E hoje com a internet, iPOD, celular e tal, não vivenciamos estas coisas. É difícil para uma pes- soa de 14 anos tocar em uma banda desta grandeza, a não ser que haja indicação de alguém que esteja produzindo algo novo como os Mutantes que esta- vam acontecendo naquele momento. Gostaria que você fizesse um contraponto destes momentos.

Bom, o planeta mudou muito. Eu sou daqueles caras que, sem querer ser pessimista, acho que a civilização está passando por um momento muito difícil, um apocalipse dosado. Nós estamos nos matando na verdade e esta loucura toda nos cegou, principalmente na hora de pesar valores. Não interessa mais se a pessoa tem ou não tem talento, o importante hoje é quanto vou ganhar. Virou business total. Acabou-se a espontaneidade. Por exemplo, na minha época tocávamos em bailinhos que era som ao vivo. Todo fim de semana eu estava tocando em alguma festa, podia ser de aniversá- rio, entendeu? Quer dizer, o músico tocava música e as pessoas iam lá para dançar. Se você fosse a um aniver- sário e não tinha ninguém tocando o pessoal perguntava: “que tipo de festa é esta?”. E hoje é completamente diferente. Hoje em dia, o cara vai com um aparelho de MP3 com milhões de músicas e tal. É ridículo! As coisas que vejo são ridículas. Quando vejo fatos como esse, já faço uma leitura não musical. Eu digo, esta garotada que está na televisão, provavelmente está por meio de empresários. Sem tirar o mérito dos meninos, eles provavelmente estão se sacrificando e acreditando no que fazem, e isso é bacana, eles conseguiram espaço, mas você vendo por este lado macro, não dá mais, não tem como aparecer uma coisa espontânea. Hoje em dia se resume a uma pessoa que investiu e vai ter que ter um retorno financeiro. Eu estou falando isso sem radicalismo. Acho que a coisa está funcionando desta maneira. Porém, tenho visto muitos espaços alternativos e a galera está mandando a ver.

LC – E como era na sua época? Também era necessário ter este tipo de contato?

Você sabe que nem lembro como aconteceu? Nós tocávamos muito e alguém deve ter visto e gostado. Imagino que fizemos algum tipo de teste, o cara gostou e lá estávamos nós, sem nenhum amigo importante.

AM – Gostaria que você falasse mais sobre isso, já que boa parte dos nossos leitores são jovens e não tem esta referência. O acesso à música na sua época era mais difícil, mas em compensação em 1959 ou 60, a música mais tocada no Brasil era Chega de Saudade. Hoje não se toca mais música desta qualidade.Tinha-se menos o que era mais, hoje se tem mais o que significa menos.

Veja a diferença: vou citar um fato curioso de quan- do a gente pegou febre por música. Eu estudava em uma escola que se chama José Cândido de Souza, na Pompéia (bairro de São Paulo). Também estudavam lá o Wander Taffo e o Juba que tocava na Blitz. Nós saíamos da escola e já íamos tocar no porão da casa do Juba e foi ali que comecei a tocar Deep Purple, Led Zepelin, Blood Rock e Cream. Meu Deus, como ouvíamos Cream! Certa vez, estávamos em um bailinho e uma menina perguntou se poderia colocar um compacto duplo que tinha acabado de chegar. Era um vinil dos Rolling Stones. O que nós fizemos? Roubamos o vinil (risos), fomos para o porão e ficamos escutando até o dia seguinte. Eu me lembro de quando chegou o Goodbye Cream, que na minha opinião foi o ápice do Eric Clapton, e nós ficamos tirando as músicas até o amanhecer. Você saboreava cada faixa. A molecada hoje não consegue mais isso, porque pode baixar toda a obra do artista e é claro que não vai ter este cuidado. Hoje não tem mais graça né, não é assim?! O cara aperta lá na internet, sexo, já está tudo ali ele não teve nem a oportunidade de pegar na mão de uma menina, dar o primeiro beijo, abraço, ter a primeira ereção, não dá tempo. Então nós temos que assumir que ficamos loucos e perdemos o fio da meada. Tudo que vier daqui para frente será consequência desta loucura 
que vivemos. Vocês
 sabem qual era um
dos meus programas 
de sábado à tarde? Eu
 ligava a televisão em 
um programa chamado “Sábado Som” que
 o Nelson Mota apresentava e lá foi a primeira vez que tive contato com Mahavishnu Orchestra, Deep Purple, Led Zepelin, Focus, por este parâmetro já dá para perceber a discrepância que existe de antigamente até os dias de hoje. Imagina, conheci Mahavishnu Orchestra na Globo!!! Sei que esta conversa parece papo de velho, mas me sinto um privilegiado por ter vivido e apreciado todas estas etapas.

AS- Como foi tocar na banda Terreno Baldio?

Isso aconteceu em 1973 e eu já fazia engenharia. Tínhamos muita influência de Gentle Giant, Yes, Jetro Thull. Nós éramos amigos que estavam afim de tocar, mas o único que sabia um pouco de música era o tecla- dista. Mas tocávamos de ouvido e íamos tocando.

AS- Como assim? Vocês foram pioneiros no estilo de rock progressivo, somando timbres e composições totalmente coerentes, tanto que até hoje em sites especializados em rock progressivo vocês são citados.

Bicho, rolou até entrevista em revista americana e japonesa! Foi uma loucura! Nós lançamos 2 discos, até o segundo era sobre lendas brasileiras que já era uma encomenda da gravadora Continental.

AS – Escrever sobre lendas brasileiras foi imposto pela gravadora?

Isso é fácil de explicar. O irmão do Eduardo Araújo tinha uma gravadora que gostou do som, e depois conhecemos outro produtor que hoje em dia é produtor na Itália e ele nos disse: “vamos gravar, mas vamos fazer o meio campo, vocês tocam pro- gressivo e eu escolho os temas. Dessa maneira vocês conseguem entrar no mercado aí e eu aqui”.

Mas tocar com o Terreno era e é puro prazer! Nós até tocamos no começo deste ano no festival Psicodá- lia, que é tipo um Woodstock brasileiro. Foi Terreno Baldio e Mutantes. Foi demais! Não sabia que existia um lugar igual àquele: uma infra-estrutura enorme, estacionamento, cachoeiras, os palcos, as pessoas vestidas como na época do Woodstock e cantando com a gente (Mozart canta um trecho de um clássico do Terreno): “No terreno baldio você pode gritar”! “Bicho de que planeta vocês vieram? (risos). Que loucura!” (diz Mo- zart admirado por ainda se lembrarem.).

Ah, só uma curiosidade. No final do anos 70, o Wander (Taffo) saiu do Joelho de Porco que estava estourando na mídia e perguntou se eu queria entrar. Eu entrei e toquei pra caramba. Um dia desses vi um vídeo em que estava nos Os Trapalhões, e eu estava no colo do Didi (risos). Depois o Wander saiu do Secos e Molhados (nessa época sem o Ney Matogrosso) para tocar com a Rita Lee e de novo me convidou para ingressar na banda.

Toquei também com o João Guilherme que fazia parte do Secos e Molhados, que depois veio a fazer um trabalho solo em que participei. Ele era muito genero- so, eu era bem remunerado. Ele me deixava colocar 10 guitarras em uma faixa. Teve uma em que escrevi um arranjo de orquestra, mas a mesma não apareceu e eu gravei uma orquestra de guitarra.

Cheguei a acompanhar artistas também. Uma vez encontrei o Ralf do Cristian e Ralf e eu fui o primeiro guitarrista da banda dele e do Fabio Jr. Todos os guitarristas da minha geração tocaram com Eduardo Araújo. Devo muito ao Eduardo. Enfim, alguns famosos e outros não.

Também toquei bastante na noite e em banda de música instrumental. Imagina só, quem tocava baixo era o Nico Assumção, tinha o Arismar do Es- pírito Santo, Duda Neves, o Albino, Zé Português, quarteto do Luiz Melo… Em bares especializados, tocávamos quase todos os dias.

AS – E era como hoje? Dava algum retorno financeiro?

A grana rolava, não era muito, mas dava. Lembro que tínhamos uma banda e uma perua em que deixávamos todo o equipamento. Se não havia uma gig, nós achávamos uma. Íamos perguntando se dava para tocar. Existia um circuito de bares legais como Penicilina, Sanja, Lei Seca, Jazz ‘n Blues que deixavam a cena de música instrumental forte.

Em 83, entrei para o Grupo D’alma e no ano seguinte estávamos excursionando em Montreal. Imagina só, em um momento você pensa que músi- ca instrumental é legal e no outro está viajando tocando em festival de jazz,tocando depois de Miles Davis com um violão na mão e não acreditando no que estava acontecendo. O D’almame trouxe esta coisa boa de tocar em grandes festivais internacionais e em todos os teatros municipais do Brasil.

AS – E a história de que o D’alma iria lançar um CD com orquestra? Isso é verdade?

É sim, inclusive gravamos duas músicas minhas e que iríamos inserir o arranjo de orquestra depois, isto era um trabalho de pré-produção. Mas neste ponto eu já tinha pedido para sair, eu queria na verdade tocar guitarra. Teve um show que eu levei uma guitarra e os caras disseram que eu já estava pegando pesado, já que o trio era de violão. Mas o D’alma foi a minha melhor gig em termos de produtividade e viagens.

LC – Você falou sobre arranjo de orquestra. Você chegou a se aprofundar nisso?

Sim, como vi que o buraco era mais em baixo, então fui ter aula com Koellreutter, com quem estudei arranjo e orquestração, já música indiana estudei com Zé Eduardo Narzario e música dodecafônica, na USP, mas fui estudar tudo de besta mesmo.

AS – Houve uma banda instrumental sua em que o Faiska fazia parte, não?

Sim, chamava-se Trielo que contava com Faiska e Álvaro Gonçalvez, que mais tarde veio a ser substituído pelo Tomati. Na verdade era um duelo de três, passávamos a noite inteira duelando um com o outro e o pessoal ia ao delírio. Hoje em dia não sei se o pessoal teria saco para assistir algo como isso, mas viajávamos direto. Com o Faiska fiquei 4 anos na estrada.

LC – E como eram estes shows?

Por exemplo, existia um lugar em São Carlos que se chamava Café com Letras, que era assim: tinha aquela fila para entrar no bar, na hora da sessão o serviço de bar parava e era uma hora e meia de pura improvisação. Quando acabava o pessoal pagava a conta e saia e nós parávamos para comer. Quando voltávamos fazíamos a segunda e se tivesse gente chegava até a terceira ses- são. Imagina só três sessões e três malucos improvisando pra caramba, drive pra caramba, eu tenho a guitarra que eu usava até hoje. Era uma Spanish escalopada, que guardo como se fosse uma relíquia.

AM – Você acha que ainda existe gente com esta proposta?

Ah, se nós balançarmos uma árvore vai cair uns 10 jazzistas, mais 50 guitarristas de rock (risos) mesmo tocando todo mundo igual, tem sim. Viajando por aí percebo que um dos caras mais imitados do Brasil é o Edu. Se o Edu tocar com alavanca de uma maneira diferente, na semana seguinte todo mundo está tocando igual. Tem mérito? Sim tem, mas não vai acontecer nada. O cara acaba de gravar um CD em casa e já quer um endorsement. Isso não existe! Hoje em dia está tudo muito precoce.

AM – Uma vez perguntaram em um workshop para John Scofield
o seguinte: Você toca neste trecho um mixo com #4, dórico e etc, e ele respondeu que não
 tocou nada daquilo e que não 
sabia nada daquilo. Na verdade, sabia tudo aquilo, mas não utilizava nada daquela maneira, simplesmente jogava tudo em um liquidificador e tocava. Hoje em dia o que ajuda os estudantes no início é o que vai atrapalhar depois (por exemplo, só pensar em desenhos), e isso é uma falha gravíssima no ensino da guitarra, coisa que já não acontece com quem toca instrumento de sopro, por exemplo.

Minha pergunta é a seguinte: você ainda pensa nas escalas na hora de tocar?

Veja bem, aqueles estudos que 
citei têm muito a ver com isso. Posso propor tais estudos para os alunos como
uma matéria desintoxicante, mas sou educador, tenho que falar do convencional. O aluno precisa ter referências, e digo para ele que minha aula não é bem de música, é de matemática musical. Vou lhe dar vários parâmetros que funcionam. Modéstia a parte, se tem uma coisa que eu posso ajudar as pessoas é na parte de harmonia que evoluiu muito. Consegui elaborar alguns conceitos que acho que posso transformar o cara em um grande harmonizador. Mas é muito difícil ensinar na parte da improvisação porque é subjetiva, por exemplo, como você vai dar aula de um Bend ou uma alavancada?

Agora, quando é ciência exata como acordes é mais fácil para se obter resultados. Hoje em dia eu dou uma matéria que se chama “outros empilhamentos”, em que cito, por exemplo, que empilhamento fusion Allan Holdsworth se faz com uma configuração, empilhamento #1, outra configuração, empilhamento #3 Jimi Hendrix. Na verdade, os caras estão tocando o campo harmônico só que de maneiras diferentes. Então, a matemática funciona logo de cara, mas na improvisação não funciona. Eu digo para meus meninos: “vocês estão acertando mas o buraco é mais embaixo. Vocês têm que pesquisar uma forma de tocar e otimizá-la.

O que vai ser eu não estou nem aí. Se o cara vai tocar em uma corda ou duas, se o cara vai tocar tudo alternado, não me importo. O importante é o resultado. Com todo respeito a algumas escolas e faculdades que você tem que palhetar tudo do mesmo jeito, o mesmo arpejo, a escala com o mesmo padrão… Meu amigo, dê uma bica em tudo isso e vai procurar sua identidade musical! Estamos em 2010 (diz inconformado)!

AS – De onde veio toda a parte didática já que não existia material na época? Você acabou inventando um material?

Sim, até hoje encontro alguns manuscritos perdidos que confesso que alguns assuntos eu tive que inventar, porque não tinha como saber, como harmonizar uma escala, por exemplo, eu acho que é assim e assado… Aí chegava para um amigo e dizia: “Você não imagina o que eu descobri! A escala maior de C7+, Dm7, Em7 etc., é a mesma escala, você sabia disso?”; e o cara me respondia: “Pô, isto é campo harmônico coisa e tal”. Então fui comprar um livro que mostrava os modos eclesiásticos de música erudita e pensava: “mas que m… é essa de hipodórico para o frigio, não estou entendendo nada”. Aí tive que ir caçando informação até chegar à resposta: “Ah, então esta coisa que é dórico, pô”. Então, depois tinha que chegar para o aluno e explicar que não era nada daquilo (risos).
Bom, mais ou menos em 83 eu morava na Teodoro Sampaio (famosa rua de instrumentos musicais de São Paulo) e tinha uma lista de espera de quase 400 alunos! Não existia professor de guitarra. Éramos Aldo Landi e eu dando aulas de segunda a segunda.

LC – Aproveitando este gancho, você utiliza alguns termos como melodórico, harmoeólio. São criações suas?

Existe uma explicação para isto. Quando estava analisando algumas transcrições do Malmsteen (isso anos depois), vi este termo harmo/eólio. O cara colocou as duas sétimas na mesma escala, com o propósito de facilitar a digitação de coisas eruditas. Então na hora que vi aquilo pensei em somar os dois campos harmônicos, que deram 14 acordes e comecei a achar tudo o que queria. Por que pensar somente em 7 notas? Não tem por quê, se você pensar em 8 notas está tudo lá. Todas as ca- dências maiores e menores estão lá, inclusive os modos. O cara vai para o lado jazzístico ou para o lado melódico, roqueiro. Hoje em dia consegui assimilar de tal maneira que consigo aplicar isto em qualquer estilo.

LC – O que você acha do ensino nas faculdades de música?

Bom, vou exemplificar, tenho uma aluna que estuda em uma faculdade de música e iríamos começar a estudar música brasileira. Perguntei o que ela estava estudando nesta disciplina e ela me respondeu que nunca tinha estudado música brasileira na faculdade e que começaria a estudar Coltrane. Pensei: “pelo amor de Deus, toca uma levada de baião aí, tem que tocar Jobim, toca polirritmia, depois toca sertanejo, tem que tocar sertanejo sim que os licks têm tudo a ver com country, toca tudo”. Então, na minha cabeça vai ser sempre assim: se eu pudesse enfiar a minha metodologia, você vai ter que tocar de tudo, se o cara gosta de rock ele vai tocar jazz, se o cara toca jazz vai ter que tocar rock e dar Bend, que papo é esse? Nós somos gui- tarristas meu. Estamos criando um cara que só sabe tocar jazz. Aqui no Brasil, o cidadão vai sair da faculdade formado, aparece uma gig com um artista renomado de sertanejo e pronto, o cara já está desempregado.

Mesmo assim, é muito importante depois estudar com especialista para aprender a linguagem de cada estilo.

Quer saber? Tem que ter uma hora que temos que nos interiorizar para analisarmos nossas atitudes. Poxa, eu não sou um rebanho, eu tenho minhas ideias próprias. Deixe-me rever meus conceitos e projetos. Por exemplo, em um momento musical que estou vivendo agora, vou ter que romper meus limites: me propus a tocar um negócio que não consigo, mas que quero tocar e vou tocar, mas meu problema não é mão, é cabeça. Eu me impus certos limites que terei que quebrar. Nós impomos vários limites para a gente, até limites de criatividade.

AS – Que músicas são estas?

Escrevi 8 músicas que são estudos que tenho há algum tempo, mas só em uma fiz um arranjo. Peguei Desafinado e estou tocando em 3⁄4 com diversos elementos: tem um que estou de música espanhola, um de rock que eu fiz em 13/16 que não fiz de sacanagem (gargalhadas), alguma coisa de sonoridade clássica e, sem dúvida nenhuma, Steve Morse com a sonorida- de dele meio barroca que tem um som meio barroco. Aliás fiz uma música que é em homenagem a ele que se chama Morseando, que inclusive já mostrei para ele e me perguntou: “Que ritmo é este?” E expliquei que era uma ritmo comum no Brasil (baião) e o cara pediu para ouvir de novo. Fiquei muito feliz ainda mais porque a música tem 7 minutos (risos)!

AM – Como você traz esta parte da guitarra com emoção, a música mais bonita do mundo, na minha opinião, é Jesus Alegria dos Homens ainda mais se for tocada pelo Nelson Freire. Mas como funciona esta coisa dentro do nosso mundo? Por exemplo, Bill Frisel que não toca muitas coisas e muitas vezes é só um sol maior que é diferente?

Por isso ele quase não é conhecido, porque o parâmetro de hoje em dia é tocar rápido. Ele é muito bom e respeitado lá, mas você consegue imaginar um cara que é famoso porque toca lento? Por isso coloquei um vídeo do Jeff Beck tocando no myspace. Ali não tem truque não, é na pegada mesmo. Mas voltando à resposta, existe um novo pacote com padrões de maneiras de se sentir as coisas. Eu posso tocar isso (neste momento Mozart empunha sua guitarra e dá um Bend fazendo careta) e vai ter gente dizendo o seguinte: “o Mozart está arrebentando hoje, está com uma p… pegada”. Porém, na verdade não estou sentindo nada. Portanto, são estereótipos sentimentais. Hoje eu questiono tudo.

AS – Mas qual é seu principal estilo como guitarrista?

Roqueiro fracassado (gargalhadas). Bem, mas não é verdade, o que eu queria mesmo era tocar rock, mas não rolou. Esse negócio de II V I não era nada do que eu tinha planejado.

LC – Você chegou a terminar engenharia?

Parei no último ano. Cheguei a trabalhar como engenheiro estagiário durante dois anos em uma estatal com despoluição de água, mas de repente me vi em uma situação desagradável: estava desempregado e só consegui encontrar trabalho com aula de guitarra e violão. Eu lembro uma situação que me marcou: tinha uma parte da engenharia que eu manjava que era hidráulica, só que eu não tinha título. Mesmo assim, fui procurar emprego em Santo Amaro e mais uma vez não consegui por falta de diploma. Porém, em frente à empresa havia um conservatório e pensei “poderia dar umas aulas, não é?! Não manjo muito, mas toco alguma coisa”. Então, eu me apresentei: “sou guitarrista e gostaria de dar umas aulas”, e na mesma hora me disseram: “pode vir na sexta-feira que você vai dar aula o dia inteiro”. Aí tive a ideia de ligar em um conservatório onde tinha tido umas aulas e perguntei: “Dona Eliete, a senhora se lembra de mim? Tive aulas de violão erudito e tal, tem como dar aula aí?” Então, em uma semana já dava aula em dois con- servatórios. Isso foi emblemático para mim porque era para ser uma situação só para tirar um extra. Afinal, sempre pensei que acharia algo em engenharia, mas esta coisa louca rola até hoje.

AS – De modo geral, qual a sua maior crítica em relação aos músicos de hoje?

Acho que o músico tem uma tendência muito grande a emburrecer. Ele fica fechado na música, tocando as mesmas coisas durante uma década e você fica patinando. Já as outras ciências têm andado mais rápido. A literatura também. Isto é uma crítica que faço a todos nós. Eu toco Autumn Leaves há 30 anos! Não é possível, cara (diz indignado), não é possível que seja sempre a mesma coisa, cadências e tal! É muito medíocre este pensamento como ser humano. Quan- do começo a ler sobre cosmologia, sobre as coisas que estão sendo feitas em ciência, eu me sinto um homem das cavernas. Caramba! Os caras estão estudando para valer mesmo e eu continuo dando aula de II V I. Sabe? Eu gostaria de estudar música explorando novos pa- râmetros e não ser obrigado a passar o resto da vida ensinando ACDC e Smoking on the Water para sobreviver de música. Não é isto que planejamos. O planeta emburreceu e nós emburrecemos o triplo. É que nós não percebemos. Basta ligar em qualquer veículo de comunicação que você confere o que estou falando. Sobra um National Geographic e um futebolzinho e mais nada. O resto é um lixo. Estou em uma fase atrás de coisas mais consistentes. Prefiro ler, chamar um amigo para conversar sobre diversos assuntos. E dentro desses parâmetros a música também se encaixa nesta mediocridade. Sinto-me medíocre como músico. Acho que temos que ter altos vôos, propor coisas diferentes, tocar coisas diferentes, pesquisar afinações diferentes, polirritmia, música étnica, tudo isto e a gen- te não faz. Estamos sempre tocando as mesmas coisas, os mesmos acordes… Isto para mim não dá mais. Eu quero fazer a diferença! Acho que alguém tem que andar na contra mão porque senão nada acontece. Daqui para frente vou tentar fazer coisas diferentes. Montei um myspace com esta proposta (myspace.com/oficinamozartmello). Se a ideia é andar na contra mão, então cai pra dentro! Coloquei um filme de um indiano e do Jeff Beck tocando sozinho. Pronto, não tem radicalismo. Só que os caras têm algo a mais. Não adianta você enviar vídeos tocando rápido que não vai entrar nesse myspace. Se você tem alguma proposta nova cai pra dentro! Recebi muitos vídeos que não se encaixam no que quero. Então, quando digo que é só guitarra e metrônomo e mais nada, acabou. A guitarra não existe mais sem aquele playback em Mi menor e você fritando ou então em uma cadência, você tocando aquelas velhas frases do Charlie Parker, dos livros norte-americanos, ou chord melody de jazz que quase sempre são as mesmas coisas. Nós moramos no Brasil!!! Nós temos uma música riquíssima! Não há necessidade de só tocar jazz. Para estudar é maravilhoso, mas proponha alguma coisa diferente, pelo amor de Deus! A proposta do que vem pela frente é por aí.

 AS – Como você definiria um bom músico hoje?

O nível do músico para mim se mede através do acorde que ele faz e não quando ele está solando. Se o cara quebrou tudo e faz acordes medíocres não quer dizer muita coisa, inclusive jazzistas que tocam aque- le C7+ suado. Conclusão, o cara é talentoso, um bom memorizador de frases e chorus e é só. O cara que não estuda harmonia para mim é medíocre seja lá em que estilo toca. Vai estudar harmonia, cara! Vai fazer os mesmos acordes a vida inteira? Eu chamo estes acor- des de churrascaria 1, churrascaria 2, churrascaria 3

AS – Quem você citaria como um músico completo?

Sem dúvida nenhuma John McLaughlin, não só do ponto de vista musical, mas acho que ele está anos luz à frente de todos nós. Os outros guitarristas que me perdoem! Ninguém escreveu e tocou com a Mahavishnu Orchestra, ninguém tocou música indiana, ninguém tocou música espanholada, ninguém gravou com Hendrix, ninguém tem mais de 10 discos gravados, gravou com Miles Davis. Então a leitura que faço dele é além de músico/compositor, o resto dos guitarristas têm que nascer de novo para realizar o que ele realizou.

AM – Para finalizar, fale-nos sobre o futuro. O que vai ser daqui para frente?

Daqui para frente? Isto que eu vou falar vai tocar no íntimo de vocês (risos).

Nós vamos sobreviver de música. Quando alguém me diz que vai viver de música, a primeira coisa que digo é: “vai ao banco e faça uma previdência privada; pague 100 paus por mês e depois nós conversamos”. Quero dizer que as preocupações são suas em ter uma vida digna e produtiva. Acho que desta maneira dá e eu tenho ainda muito pique para trabalhar, mas às vezes não é o suficiente. Vejo muita gente talentosa merecedora de uma situação financeira melhor e não está rolando. Eu fico muito preocupado. O cara tem que parar de fantasiar e se perguntar o que vai estar fazendo daqui a 5 ou 10 anos e que tipo de música vai estar produzindo. Ou outra pergunta cruel seria como estarei vivendo de música? Porque toda esta geração nova que está aí tocando, feira de música e coisa e tal não fez este exercício não. Eles estão achando que é lindo, que o cara vai lá e vai tocar o cover do Satriani, vai tocar rápido. Não é isso aí, não cara (enfatiza). Vai chegar uma hora que não vai conseguir dar mais tantas aulas, a família vai crescer, a cobrança social, da família, namorada, mulher, filhos etc. é muito violenta. Então, você tem que pensar realisticamente algumas coisas. Eu já exclui algumas delas. Concordo que já não dá mais para colocar uma peruca preta e uma calça de couro e manter uma banda de rock (risos).

Mas, eu vejo o futuro com muita simpatia. Vejo esta parte de aula mais voltada para cursos e livros. É nisso que estou focado.

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