“A Canção Brasileira” – Conrado Paulino (Por André Martins)
É uma segunda-feira chuvosa em São Paulo. Estamos a duas semanas do segundo turno mais importante da história política brasileira. Estou já faz alguns dias com o disco novo do violonista Conrado Paulino em mãos, mas devido tanto a correria de trabalho, aulas, escrevendo uma tese e o engajamento político necessário que o momento requer, ainda não havia escutado. Coloco a primeira faixa e, em poucos segundos, minha manhã transforma-se. Deste lugar úmido da chuva e belicoso de discursos inflamados que estou (estamos todos) agora, sou levado instantaneamente para uma outra esfera. As primeiras notas de “Todo o sentimento”, composição de Cristovão Bastos e Chico Buarque, me tira daqui. Entre os acordes maior e menor há algo de tão lírico e sutil que não sei explicar, mesmo sabendo exatamente o que Conrado está tocando naquele momento. Mas o que eu ouço, agora, não são cadências, tétrades, notas de tensão ou clusters que tanto estudamos, tanto praticamos e ensinamos. O que me toca, literalmente, é algo etéreo. A poesia que existe aqui não tem palavras. Conrado Paulino me leva para longe deste lugar de brigas e tensões extremistas, me leva a um lugar onde a música fala por si mesma. Há tanto ar nesta gravação de “Todo o sentimento” que chega a me deixar assustado com tamanha sensibilidade em arranjar e interpretar uma obra-prima do cancioneiro brasileiro. Em seguida, outra de Chico, agora em parceria com Edu Lobo, “O Circo Místico”. Ouvindo o violão de Conrado, ouço simultaneamente a delicada voz de Zizi Possi cantando singelamente: “não, não sei se é um truque banal, se um invisível cordão sustenta a vida real”… A vida real, neste exato momento, é o violão singular de Conrado, que continua a me levar daqui, que continua a me salvar deste mundo conturbado, me possibilitando uma viagem única através da música brasileira. O som belíssimo, registrado de maneira soberba, canta e encanta. Poderia gastar aqui todo um Houaiss de adjetivos, e eles ainda assim não seriam suficientes para tamanha beleza, delicadeza e singeleza que existem nesta versão do “Circo Místico”.
Continuo embevecido pela música de Conrado, e me chega aos ouvidos o início de “Sem você”, de Tom e Vinicius. Novamente, a poesia do Poetinha fica zanzando em meus ouvidos, enquanto o violão de Conrado, ubiquamente, me faz sentir uma vontade de ficar ali, parado, ouvindo essa música, para sempre. O violonista mistura técnica apuradíssima com sensibilidade e musicalidade ímpares. Poucas vezes ouvi tamanha mistura de forma tão homogênea, sem perder as características individuais destas duas áreas tão importantes para um performer. Conrado não tem a intenção de se mostrar técnica ou melodioso, performático ou lírico. Conrado apenas toca, e a música sai de seu violão de uma forma potente e singular. Faltam-me mais palavras para descrever tal sensação que é ouví-lo neste disco.
Outra de Jobim, “Falando de Amor”, com uma introdução flamencada, traz uma ponte entre Andalusia e Copacabana. Entre estes dois mundos já idílicos e talvez hoje imaginários, Conrado tece a melodia e a harmonia desta canção de forma musical, em andamento lento, sem ser vagaroso. Há espaços entre os acordes. Há vida entre as notas. As cores de cada um destes dois lugares, seus cheiros, céus, ruas e povo, vão permeando minha imaginação e me levando a um passeio único, num mundo onde há paz na diversidade, onde há respeito pela mistura e pelo cruzamento de culturas diferentes que, somadas, não são apenas mais fortes, mas mais vivas e contundentes.
“Menina da Lua”, de Renato Motha, é Minas. Das Geraes, Conrado traz uma versão belíssima desta canção contemporânea, onde o sorriso é o tema que nos faz levar na lembrança de uma singela melodia a importância de vivermos sempre em busca da liberdade, ainda que tardia. Canção bonita, canção poderosa, lírica, delicada, canção brasileira. E “Dinorah, Dinorah”? O que dizer deste clássico? Pois Conrado consegue interpretá-la de forma não só brilhante, como nova, com a incrível ajuda percussiva de Doulgas Alonso e os baixos contrapontísticos que o violonista constrói ao longo do tema. “Sim ou Não”, de Djavan, é beleza pura. Inventamos nós mesmos todas as razões para amar e para termos razão, muitas vezes entre a saudade e o pranto. Da letra e da melodia do músico alagoano, Conrado constrói um andamento vagaroso, grave, largo como o tempo. É como se fosse possível esticar os segundos além dos que formam um único minuto, estendendo-os ao longo deste momento. Conrado faz o tempo parar, sempre tocando e avançando com uma melodia tão bonita quanto arriscada. Suas frases são pedaços de puro prazer, joias raras.
“Tema de Amor de Gabriela”, só do Tom, me lembra a cor do mar num fim de tarde. Não há outra metáfora possível aqui. É aquele dia quente, mas com brisa. São os pés n’areia e o coração n’água. Que bonito, Conrado, que bonito esta versão.
O que vem em seguida é forte. Da mais pura linhagem do violão brasileiro, Conrado performa “Simplesmente o Bem Verdadeiro”, uma espécie de Bachianinha revertida em uma canção ainda mais brasileira, popular, diversa. É quase samba, é quase música de concerto, é praticamente uma obra-prima. O tempo, novamente o tempo, se faz senhor deste momento. Ao longo de pouco mais de seus seis minutos, primas e bordões se enroscam uns aos outros, num território que se forma e se desfaz.
Num outro momento, Conrado arrisca de outra forma. Gravar “Garota de Ipanema” é arriscado, seja pela obviedade, seja pelo risco de muda-la de tal forma que a música imortal de Tom e Vinicius não seja mais o que foi uma certa vez. Conrado livra-se brilhantemente destas duas árduas tarefas, mantendo o equilíbrio da Bossa Nova, mantendo a linda melodia e a cadência harmônica simples e das mais eficientes que existem na música popular. Em “Razões do Coração”, de Toquinho e Vinicius, o violonista interpreta de forma brilhante mais um clássico parrudo do cancioneiro brasileiro. Técnica apuradíssima e sensibilidade exemplar, novamente em ação simultânea.
E a manhã chuvosa e calma vai chegando ao fim, com “Coração Deserto”, de Elton Medeiros e Regina Werneck. Há na música brasileira a presença de cadências que quase caminham por si só. Aqui, nesta belíssima canção, Conrado me mostra exatamente estes caminhos, que me lembram ruas de pedras, ladeiras apertadas e bares com luzes amarelas na entrada, com um povo que canta, que dança, que vive em paz.
Como disse o eterno mestre dos mestres do violão brasileiro, Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, o nosso querido Guinga, Conrado Paulino é um dos grandes arquitetos do violão brasileiro. Após esta viagem sonora e idílica que este novo álbum me proporcionou, eu diria, humildemente, que Conrado vai ainda além, mais além. De sua arquitetura de sons e texturas, ele nos leva a parar o tempo corrente e nos coloca numa linha paralela onde a vida acontece de outra foram: mais poética, mais lenta, mais, como se fosse possível, viva.
Um dos discos mais bonitos que já ouvi da música brasileira. Essencial.
(André Martins)