O som que vem da Alma (Por Júlio Siqueira)


Fotos Flávio Tsutsum/*Roberto Fachini

Talento, estilo e honestidade na hora de tocar são características que devem ser valorizadas, o guitarrista Michel Leme tem todas elas de sobra, dono de um estilo inconfundível e uma carreira de sucesso, ele está lançando o seu 10º álbum chamado Alma, um disco produzido totalmente de forma independente que traz 5 faixas gravadas em um único take, confira abaixo a entrevista que ele deu ao Guitar Experience.

 

Michel Leme - Alma

    Eu passei a semana toda ouvindo o seu novo disco chamado ALMA, parabéns! Ele é o seu décimo trabalho oficial e vem depois de um disco chamado 9, quais são as principais diferenças entre os dois?

 O prazer é todo meu, Julio e todos do Guitar Experience. Muito obrigado pela oportunidade.

“Alma” é o registro do grupo chamado Michel Leme Quarteto tocando na tarde do dia 18 de dezembro de 2015 e “9” é o registro do mesmo time tocando em maio de 2014, ou seja, tem um ano e meio entre as duas sessões. Outra diferença é que para gravar “9” eu quis pegar o grupo de surpresa e fizemos apenas uma apresentação com as músicas do disco antes de gravar. Já para o “Alma” nós tocamos cinco datas antes, o que nos deixou muito mais à vontade com o repertório e mais sintonizados como grupo.

 

    O disco foi gravado em um único take, como rolou essa gravação, onde ela foi feita? A banda tem que estar muito bem entrosada para que isso seja possível, você pode falar um pouco sobre esse processo?

Nós gravamos no estúdio que fica na parte de baixo da casa do Bruno Tessele, um lugar bem pequeno e com o teto baixo. Como tínhamos filmado algo lá uns meses antes (Táta Sessions, no youtube), eu decidi com os caras que lá seria a locação para o próximo disco. Aí eu marquei a data, o Flávio Tsutsumi levou todo o equipo para gravar e fizemos o disco todo num só take.

Sobre o processo de entrosamento, eu simplesmente não falo nada para os caras sobre como devem ou não tocar. Isso é o principal. Aí a gente só toca e fica assistindo as coisas acontecerem no momento. Se eu chamo alguém para tocar comigo é porque eu gosto do que esse cara toca e porque também confio nele. Sendo assim, eu não preciso dizer nada. Esta é uma parte do processo. A outra talvez seja nós conversarmos bastante sobre vida, música etc. Nós realmente gostamos e nos importamos uns com os outros. Outro fator talvez seja apresentar músicas que sejam músicas e não coisas que jamais serão entendidas ou memorizadas por um músico de bom senso, como rola bastante por aí. Nosso lance é tocar, e os temas precisam combinar com isso.

 

    A sonoridade desse disco é bem encorpada, quais equipamentos você usou para a gravação?

 Se você se refere à guitarra, usei uma chinesinha que não preciso dizer a marca que adquiri em 2014. As cordas são D’Addario Chromes .012 com a primeira E .013 e a G .022. O amplificador foi um CJ50 da Rotstage, porque a sala pequena não comportaria meu Libra 100, da mesma marca. Uma coisa importante é que não usamos mais microfone dinâmico para gravar a guitarra, só condenser. Fazemos assim pelo fato do condenser ser mais fiel ao que realmente está saindo do amplificador. Em relação aos outros instrumentos, microfonamos tudo e o Flávio Tsutsumi tirou um puta som – e ele foi quem mixou e masterizou também.

 

    mivhelOs músicos que te acompanham tocam com você já há alguns anos, você pode nos falar um pouco sobre cada um deles?

 Em 2004, eu toquei pela primeira vez com o Bruno Tessele. Foi num bar na Vila Madalena com o Rodrigo Pinheiro, que foi meu aluno de guitarra, no baixo. Neste som, onde me lembro que fiz um tema na hora, o Bruno fez uma levada que simplesmente não existia; era como a combinação de dois ritmos que eu jamais tinha ouvido. Acho que nem ele se lembra disso, mas nesse dia eu passei a tocar com ele direto, porque senti que havia algo de especial.

Em 2008, não tenho certeza, comecei a tocar com o Bruno Migotto. Uma vez foi com o Bob Wyatt de batera e outra com o Rodrigo Digão Braz, que gravou no meu primeiro disco solo “Quarteto”. Logo em seguida, nós tivemos uma data num Festival de Guitarra em São Paulo, que foi a primeira vez que tocamos como trio, eu e os Brunos. Nós já gravamos dois DVDs e quatro CDs.

Depois de gravar o álbum “Na Hora”, de 2013, eu decidi que seria o momento do trio virar quarteto, aí dei a ideia de chamar o Felipe Silveira. Os caras adoraram, e o grupo virou quarteto em 2014. Toco com o Felipe desde 2008, quando gravamos um lance com o Thiago Alves e o Paulinho Vicente. Desde então, eu curti muito tocar com ele porque sempre é uma troca, uma soma, algo raro entre guitarristas e pianistas.

São pessoas que tocam para o som e que entendem muito bem que o melhor a se fazer é dedicar-se todos os dias e, no momento de tocar, deixar a música mandar. Tenho a sorte de conviver, tocar e aprender com estes e outros músicos que tem essa motivação.

 

O disco tem 5 músicas que somam 71 minutos, ou seja, as músicas são longas, o tempo longo de cada uma vem do fato de você ter muito a dizer? E o que você quer dizer com esse disco?

 Na minha visão, a minutagem não quer dizer nada. Quem fica olhando no relógio insistentemente durante uma bela tarde em meio à natureza, por exemplo? Então, se as coisas que acontecem tem uma razão para tal, se o grupo está tocando o que é realmente preciso no momento e se estamos curtindo a música, é porque cada um está ouvindo tudo o que está sendo tocado e usando a intuição para seguir em frente – diz o mestre Igor Stravinsky que “a intuição nunca erra”. A partir daí, coisas como minutagem ou alguém achar que é longo, simplesmente não importam.

Outra coisa é que, se um solo acaba antes ou depois do que deveria, muito provavelmente ele perderá o sentido. Então, como não há nenhuma censura quanto a durações ou qualquer patrulha estética, cada um toca o que sente que deve tocar e, desta forma, tudo acaba se relacionando e gerando algo que tem a ver com o que é natural e vivo. E se for natural ter apenas uma música de 74 minutos num disco, é o que farei, sem dúvida alguma.

Quanto à segunda parte da pergunta, não é uma questão do que “eu quero dizer com esse disco”; nós já dissemos e ele está disponível para quem estiver a fim de degustá-lo. Assistir à apresentação do grupo ao vivo também é uma ideia. Sejam todos bem-vindos.

 

   O disco se chama ALMA, que também é o nome de uma das musicas, existe algo de espiritual nessa escolha? Tem a ver com o que você disse em algumas entrevistas sobre o momento perfeito da vida acontecer quando você está tocando?

 O disco se chama “ALMA” porque é o nome de uma das músicas. Eu não tinha feito nada assim em discos anteriores e achei que neste seria legal. Já a música “ALMA” tem esse nome porque segui minha intuição no momento de escolher o título dela. Sobre o “momento perfeito”, é bom esclarecer que sinto isso porque a música nunca mentiu para mim, então não tem a ver com achar que “toco pra cacete” ou que nada vai dar errado, mas, sim, com “enquanto tocamos música, ela nos ensina, nos eleva e abre os nossos olhos”.

 

    Já falamos da música ALMA mas eu também gostaria de saber quais são as historias de Nave, Joaquim, Os Biltres e Celso Childs Jr?

 “Nave” é um título que tem a ver com a função deste tema, que é “embarcar na música”. “Joaquim” é em homenagem à chegada do filho do Felipe. O engraçado é que fiz o tema primeiro e depois decidi fazer a homenagem. Só então eu descobri que o tema principal dá certinho com a métrica do nome do moleque: “Jo-a-quim”. “Os biltres” é um boogaloo, ritmo sobre o qual gosto de compor também, e que nos coloca em outra atmosfera, talvez mais suja e onde possamos expressar coisas mais, digamos, safadas e nojentas. “Celso Childs Jr.” é como uma continuação ao tema “Celso Childs Blues” que gravamos no DVD “Na Montanha”, de 2012 – esgotado; ambos tem a parte A em E e a parte B em C, aí relacionei-os pelo nome também.

 

michel 2jpg    Todos os temas são bem complexos, como você faz para tê-los na “ponta dos dedos”? Como é a sua rotina de estudos?

 Se eu enviar as partituras para você, talvez você não ache tão complexos assim, mas cada um vê a coisa de um jeito. O único um pouco mais difícil de executar mesmo é o tema de “Nave”. Eu, por exemplo, considero meus temas quase que simplórios; eles dificilmente chegam a ter uma terceira parte. Mas, enfim, eles funcionam como molduras para nossa expressão. Gosto de melodias marcantes e estruturas intuitivas, progressões de acordes e métricas que instiguem a improvisação.

Eu não tenho rotina de estudos. Rotina é uma palavra péssima, não sei porque tantos professores insistem em usá-la. A música é vida, e aí eu pergunto: alguém já viveu um dia exatamente igual ao outro? Não podemos confundir disciplina com rotina. Então, na minha pouca disciplina, eu dou prioridade para estudar aquilo que está pior. Este é o meu critério. Também fico atento às coisas que meu sistema pede para abordar no estudo. Vou indo assim, descobrindo coisinhas na guitarra, aprendendo um tema aqui e outro ali, registrando possíveis músicas (gravando ou escrevendo), tocando por aí ao máximo e observando. A música é generosa demais, cada dia surge algo que nunca toquei no mesmo instrumento que toco desde os sete anos de idade.

 

    É verdade que foi você quem fez a arte da capa? Você tem o hábito de desenhar?

 Sim, eu costumo desenhar para, digamos, desopilar o inconsciente. Um destes desenhos foi uma tentativa de representar “Ânima”. Aí, como o nome do disco e o tema do desenho têm a ver, juntei as duas coisas.

 

    O que você gosta de ouvir? Você só escuta guitarristas? Você acha importante ouvir outros estilos e outros instrumentos?

 Como já disse em muitas entrevistas anteriores, o que eu menos ouço são guitarristas. Eu ouço música indiana clássica (Ravi Shankar, Hariprasad Chaurasia), música clássica ocidental (de Bach a Bartok, de Beethoven a Stravinsky, de Olivier Messiaen a Palestrina), heavy metal (Black Sabbath é minha banda do coração, Pantera, Crowbar), rock (Hendrix, Van Halen), jazz (Ahmad Jamal, Oscar Peterson, Keith Jarrett, Miles Davis, Coltrane, Joe Henderson etc.), música africana etc. É importante aprender com os mestres, que é a informação que vem de fora, assim como é vital estar atento ao que está dentro.

 

    Além do Jazz você participa de vários projetos ligados ao rock, você poderia comentar um pouco sobre eles? 

 Eu gosto muito de rock e tenho a sorte de ser chamado por alguns caras legais dessa área. Não vou citar nomes pra não ser injusto caso esqueça o nome de alguém. Minhas participações estão no meu site, em DISCO, e tem algumas coisas na playlist DISTORTION, no www.youtube.com/MichelLemeGuitarrist

 

    Você endossa algum tipo de equipamento? Quais são eles?

 Cordas D’Addario, que uso desde moleque e sou endorser através da Musical Express desde 2005. Uso XL .010 nas guitarras sólidas e Chromes .012, como já citei, nas acústicas. O amplificador é da marca Rotstage, nacional e maravilhoso. Essa parceria vem desde 2007 e tenho um modelo-assinatura chamado LIBRA, nas versões 50W e 100W, totalmente valvulado.

O álbum “ALMA” teve o apoio das marcas: D’Addario, EM&T, Espaço Sagrada Beleza, Luthieria.net.br, Rotstage, Sho’You audio & video e Poptical Banana Gourmet.

 

    Dá pra viver de música no Brasil tendo um trabalho original, ou seja, não sendo cópia de ninguém?

 Trabalho com aulas desde 1990 para suprir a parte da sobrevivência e quando vou tocar não digo amém a quem quer que seja. Só que esta é minha trajetória, não dá pra eu bancar o “coach” e estabelecer regras e dogmas para quem está a fim de viver de música a partir da minha experiência pessoal. Cada ser é único e, portanto, sua trajetória também. Então, é importante aprender com a história dos outros, claro, mas ficar atento à sua. Sou muito agradecido pelo que a música tem me proporcionado.

 

  Michel Leme - Foto de Roberto Fachini  Onde o disco pode ser encontrado? Você tem uma agenda de shows, onde ela pode ser vista?

 A Tratore já começou a distribuição física e digital. Já tem no Deezer, Spotify, Google Play e, em breve, também estará no iTunes. Lista das lojas de São Paulo: Pop’s, Aqualung Records (Galeria do Rock), Free Note, EM&T Jabaquara, Espaço Sagrada Beleza (bairro Campo Belo, onde rola o Sagrada Música), Virtuose Escola de Música. Isso é o que tem por enquanto, porque a distribuição se iniciou há poucas semanas. Também é possível comprar direto comigo através do email michel@michelleme.com

Minha agenda está sempre atualizada, sejam bem-vindos: http://www.michelleme.com/agenda.php  

                                                                                                                                                 *Foto  Roberto Fachini 

    Michel, muito obrigado pela entrevista, espero que você tenha gostado. Como você também é professor eu gostaria que você deixasse um recado para aqueles que tem o sonho de viver de música.

Seja honesto com você mesmo para merecer as visitas da divina música. Auto-observação e auto-correção sempre. Confie na vida e seja agradecido por poder tocar. E, sendo assim, seja cada vez mais merecedor desta dádiva.

Abraços,

Michel Leme

www.michelleme.com

Escute os samples do Álbum Alma clicando aqui